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terça-feira, 12 de abril de 2011

Those were the days...

Eram cerca de 28 minutos de puro gozo. De expectativa adiada até aos últimos metros. E que saudades me deixam… Esta manhã o Francisco (agora um leitor cada vez mais ávido) tropeçou num nome novo e perguntou-me “Pai, quem é o Carlos Lopes?”. Foi o suficiente para despertar em mim tanta coisa que estava adormecida no baú da memória! As noites feitas de horas de espera em que assistia ao desfile das masculinas atletas da RDA (sim, da RDA), as camisolas com as letras CCCP encimadas por rostos fechados na concentração, os ditos incontornáveis (“lá vai mais um para a Sibéria!”). Provas e mais provas…lançamentos de martelo, provas “menores” de pista, uns saltadores aqui e ali e a impaciência a crescer… Depois, geralmente no fim do programa diário, apareciam os homens que queríamos ver. Uns africanos (ainda não havia longos reinados de etíopes magricelas e velozes), uns europeus de Leste, o temível Viren (que nos “roubou” duas medalhinhas de ouro em 1976 e nunca se livrou de famas bizarras como a de fazer transfusões com sangue de rena…o que se inventava para justificar o que nos parecia impossível), uns britânicos, uns americanos e…Carlos Lopes. O NOSSO Carlos Lopes. Era baixinho quando começava a correr e um gigante no fim de cada prova. Quando ganhava era o primeiro quando não ganhava era o primeiro dos nossos corações. Lopes colocava-se na linha de partida ao lado daquela gente toda, aguardava o tiro e esgueirava-se por entre aquela muralha de cotoveladas e empurrões para assegurar sempre um lugar de observador. Nas primeiras voltas Lopes controlava o andamento dos outros. Nunca o vi ir atrás de uma “lebre” daquelas que ele bem sabia que iam estourar umas voltas mais adiante. Nós ficávamos colados às televisões, estupefactos mas ao mesmo tempo confessos crentes nas capacidades de discernimento do nosso atleta. Por vezes as “lebres” ganhavam inesperado avanço e os nossos corações eram assaltados pela dúvida: será que desta ele se enganou? Mas não. Lopes nunca se enganava. Por muito grandes que fosses os avanços estas “lebres” eram comidas pelo pelotão…e o meio do pelotão, no tal lugar de observador, seguia Carlos Lopes. Sucediam-se as voltas. Raramente se via Lopes a “pegar na corrida”. Ele era o estratega que se deliciava a ver os outros caírem na vertigem de levarem o esforço além das suas capacidades. Lopes, não! Passada firme, olhar atento, jeito humilde…ele ia gerindo o seu esforço e mantendo alguns sob vigilância. E passavam os minutos. E todos sabíamos que íamos ter mais uma alegria. E que aqueles 27 ou 28 minutos iam valer a pena. E que no dia seguinte íamos pertencer ao grupo dos “sorridentes com olheiras”. Faltam 5 voltas. Parece que Lopes não quer resolver ainda. A multidão de corredores que se acotovelavam há umas quantas voltas atrás era agora uma espécie de colecção de minhocas. À frente uma minhoca mais gorduchinha porque composta por um magote de homens que não mostravam no rosto o esforço. Depois umas minhocas mais pequenas e mais magrinhas…com homens com máscaras de esforço, alguns a arrastarem os pés…outros a desistirem. E Lopes continua. Faltam duas voltas. Por vezes algum incauto tenta dar uma “sapatada” na corrida mas logo é colocado no seu lugar…expelido pela cauda da dita minhoca. Ficam poucos e a conta é fácil de fazer: só há lugar para três no podium e o lugar que nos interessa só tem uma vaga e geralmente há uns quatro ou cinco que teimam em correr ao lado de Lopes. O sono é um lugar esquecido há quase meia hora quando toca a sineta que assinala a última volta. Mesmo assim é como se acordássemos. Nós e os atletas. O passo é acelerado, a fila fica mais estreita e longa. Lopes está firme mas não avança, sabe esperar. Os corações batem com mais força porque olhamos para as caras e vemos em todos a mesma convicção, a mesma certeza, a mesma intenção…mas nem todos têm a força de Lopes. Faltam 300 metros e ele joga. Joga tudo como sempre faz. Dispara. Parece que começou agora. Leva sempre um ou dois consigo para vencer antes do fim. Lopes não para. Lopes não vai parar! Lopes destroça a concorrência e cruza a meta e ouve-se o grito dos outros noctívagos que esperara, por mais uma alegria. Dormíamos melhor depois de ver Lopes a correr. Vivíamos melhor quando éramos resgatados por um “tipo como nós” que chegava lá e mostrava o que valíamos. Sem truques, sem estratagemas. Com vontade, força, determinação e muito…muito trabalho.


“Francisco, Carlos Lopes era um grande campeão que me deu muitas alegrias e ainda é vivo”, respondi eu com pena de não acreditar que um dia possa partilhar uma dessas madrugadas que já não existem com o meu melhor amigo.

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Lendo (relendo?) ...

  • What the dog saw
  • The Tipping Point
  • Made in America, Bill Bryson

Ouvindo...

  • The Smiths..."Reel Around the Fountain"
  • Mozart... "alla turca"